COMO VOCÊ CHAMA ?

tiago

 

Amadeu era inseguro com seu nome porque soava pra ele como um “nome gay”. Talvez fosse pelo “deu” no final, ou pelo “ama” no início, ele não sabia ao certo. Não explicava pra ninguém porque, mas não gostava do nome e não fazia questão de esconder.

Matias também não curtia seu nome. Não possuía muita consciência disso porque fazia parte dessa juventude que não pensa muito sobre nada. Juventude irrefletida, crianças ípsolon ou coisa que o valha. A moda já é feia por si só e fica pior quando substitui a mente. A verdade oculta por trás da ignorância é que Matias soava como o futuro do pretérito deve soar: ias, pensastes, pretendias… Seu nome soava como a sensação de habituar-se ao fracasso.

Devid odiava seu nome de pobre, desses que tem a intenção de soar chique e estrangeiro, mas que devido à maldade ou ignorância do escrivão do cartório, pra sempre soaria como um erro de grafia. Preferiria ser chamado de Dáivide por uma má pronúncia abrasileirada dum David bem grafado do que o contrário…

Joanderson não ligava pra como seu nome soava. Era surdo-mudo e por toda a vida jamais desconfiaria de quantos professores e colegas de sala ironizavam a feiura do seu nome. E esses nunca entenderiam como Joanderson fica legal quando dito em libras.

Seu Luís nunca comentara nada com ninguém sobre seu nome, apesar da idade avançada. Seu nome era normal, um nome comum, e ele um senhor tímido… Não havia porque fazer alarde. Mas no fundo, detestava ser chamado de Seu Luís. Porque era negro e o tratamento “seu” lhe remetia posse. Como se de alguma forma ele fosse dono de algum outro Luís. E isso, muito lá no fundo de verdade, lhe fazia mal, mesmo que seu Luís fosse ele mesmo.

Catherine insistia que a pronúncia correta do seu nome era Quétrhine, mas como quase ninguém conseguia, pra simplificar sugeria que a chamassem de Quéti, porque na sua imaginação se sentia uma gata assim…

Jansem adorava seu nome porque, por alguma razão, isso o fazia sentir-se um galã de filme americano.

Dandara é uma menina linda, negra, forte, cheia de vida, coragem e esplendor, mas sentia vergonha do seu nome porque o achava meio estranho. Tinha perdido o lastro da origem histórica do seu nome, dado pela avó que faleceu antes que pudesse explicar. Queria chamar Kéthlin, como a gordinha mal educada que monopolizava as atenções dos garotos no grito e no shortinho. E olha que Dandara nem gostava de garotos…

Zenaide não conheceu seus pais e era curiosa de saber porque se chamava assim, mas não tinha problemas com o nome. Seus amigos a chamavam de Zê.

Joyce Maria gostava do seu nome, mas detestava que fosse composto. Sempre escondia o Maria. Preferia que não soubessem e achava que abreviando só com um discreto Ma, escondido sob uma rubrica bem rabiscada ninguém perceberia.

Nogueira se acostumou a ser chamado pelo sobrenome. Sentia que assim pareceria mais competente, mais sério. E decerto ninguém se importava quando chegava atrasado.

Cesinha era um cara imenso, grandalhão de corpo – forte, mas menor que seu espírito gigante. Amante de Prí e pai de Ravi. Segue adiante sem saber o quão orgulhoso é de si.

Sebastião dos Santos ouviu quando criança que “dos Santos” era nome de bastardo. Nome dado pra quem não sabia quem era o pai. Ele conhecia pai e mãe, de quem herdara o sobrenome. Gente boa, trabalhadera. Mesmo assim se constrangia dos santos.

Lívia era loira e tinha um sobrenome europeu. Temia que todos pensassem que era uma almofadinha filhinha de papai. E era mesmo.

Neto aceitara seu nome desde bem cedo. Nunca desgostou nem nunca contestou. Só parecia certo pra ele. A força impositiva da tradição. Seu primeiro nome sumia, era Neto, filho do seu pai que tinha de nome Filho e neto do seu vô, como se isso fosse exclusivo só da sua família.

Carlos não tava nem aí. Carlão é grosso, todos diziam. “Foda-se” ele respondia num silêncio-sorriso vago.

Romário, Ronaldo e Richarlisson só desprezavam futebol mais do que seus próprios nomes. Nunca teriam sucesso porque nunca seriam capazes de falar seu próprio nome com convicção. Diz-se que, pra se ter sucesso, ser avante na vida, é preciso saber bradar o próprio nome. Um dia, na praia, urrando pro mar, ou em noite de lua, uivando alto, ou na rua, na madruga, evocando sem medo seus deuses e diabos de dentro.

Quem sabia disso era Zé. Seu nome era Daniel, mas seu apelido é Zé, e dentre tantos amigos, intuiu isso sozinho. Entre Ti, Tatu, Moa, Rafa, Tati, Ju, Mári, Dúdi, Rô, Gabs, Regs, Will, Gui, Tom, Tchéllo, Giba, Fê e Di, aprendeu que o nome escrito é detalhe num pedaço bobo de papel, que o que pega mesmo é o Zé, a pronúncia, o verbo feito no ar: som, vibração, intenção. O chamado. O nome que flui fácil, que logo deixa todo mundo habituado.

Dona Helena, por exemplo, é o nome ocidental da senhora Kuniko. Ela acha que terão dificuldade de sacar seu nome japonês no Brasil, ou talvez seja só um jeito de preservar um nome meio secreto, um pseudônimo no RG. Como Gê, apelido de Geni que foi formalizado no papel passado porque ela já não suportava mais a associação com a canção do Chico. Ou Adão, cujo sobrenome era impronunciável e ninguém sabia direito apesar de estar nos jornais todas as semanas. E tinha também o caso de Beila, que no registro era Berta, mas que era chamada de Beila há tanto tempo que quando a chamavam por Berta ela nem se dava conta de que era com ela. Não respondia e às vezes chegava ao cúmulo de esquecer o próprio nome e surpreender-se com a redescoberta.

Tem os bebês gordinhos que mesmo estando na maternidade, com seus nomes escritos em uma ficha pela primeiríssima vez, nem parecem ter nomes de criança: Jasão, Arão, Rubens, Vladimir, Conceição. Tem também o filho do Rodras com a Ana, que não é Arthur, mas Tuco. Ou o Thiago que não é Thi, mas T.H.

Tem os nomes ocidentais preferidos de pessoas orientais: Hélio, Cássio, Cristina, Reginaldo. Ou ainda os nomes afrescalhados: Marianne com com dois enes, Lecy com ípsolon, Orácio sem agá…

Tantos seres que nem pensavam em seus nomes, influenciados ou não por eles. O nome é como o casco de uma tartaruga. Exerce um peso sobre você, está a sua volta, faz parte do que você é, define sua natureza. E não há como fugir dele.

Kelly, por exemplo, era super recatada pra compensar seu apelido. Max tinha complexo de inferioridade. Iraê descendia de índios e era técnico de informática. Givanildo era super simpático e considerado boa praça. E diz que no interior de Pindamonhangaba, tem um roceiro de oitenta e quatro anos chamado Aristóteles. Alceu, Pompeu e Abreu, gostam de dizer “só sei que não fui eu”. Amarildo partiu, ninguém sabe, ninguém viu. Aratan é grande demais até pro sobrenome Brasil. Silas o primeiro tem nome de guerreiro. João, vulgo Jão, nascido em Junho, faz seu corre como ladrão. Sandro sorri tão gostoso que seu apelido é Simpatia, quer ser diplomata, fala manso e esbanja empatia. Salomão é chamado Saloma, tão generoso que por onde passa, soma. Isaac sentia que seu nome estava extinto e que nunca encontraria um xará. Gisela ficou na moda e virou nome de magrela.

Serão os nomes que interferem nas pessoas ou o contrário? Esse mistério pra sempre permanecerá, o velho paradoxo da criação. Pela tradição hebraica, parece que a palavra faz o poder e não o contrário. Então Adonai, não nos abandonai! Mas também não vamos só dizer amém pra tudo quanto é HaShem. Pensa bem, pensa bem nos nomes que as coisas têm. E não vem com besteirol verborrágico, porque quando desperdiçamos palavras isentas de sentido, a mágica se vai do verbo e os nomes ficam sem: Encanto? Engenho? Ensino? Entretanto, lamento ver tantos seres lindos envergonhados de seus nomes como se isso definisse o que são. A tartaruga tem uma impressão única no tal do casco duro, assim como temos nas pontas dos dedos. Mas tem também as tartarugas de desenho animado, que abandonam as casinhas e partem com trouxinhas nas costas pra outras paragens. Em condições mais ou menos cartunescas, o mesmo vale pra caramujos, peixes de aquário e o homem civilizado. Cada ser pode ser outra coisa, se fizer deixar ou assim permitir. Glutões insensíveis às vezes viram mesmo porcos. Canalhas obedientes às vezes viram mesmo cães. Pessoas lindas e frágeis às vezes viram mesmo flores. E o parceiro de todas as horas às vezes vira mesmo uma rocha.

Então a lição é equilibrar o cala e o fala no meio da tua cabala. Faço votos de que abra a trava da tua cadabra. E de que dê mais atenção a uma pergunta tão cara quanto barata:

Como você chama?

Lua Cheia em Sampa – Sexta-Feira, 13 de Junho, 2014.

Tiago Abreu é historiador  formado pela PUC-SP e trabalha como educador de todas as áreas das ciências humanas. Desde 2004 coordena e participa do coletivo de arte e grupo de estudos NeoMitoSofia , que tem por objetivo interelacionar histórias em quadrinhos e diversos desdobramentos da arte contemporânea com a filosofia. Atualmente também tem atuado como colaborador da Revista Córrego, como escritor de crônicas, artigos e poesias. 

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