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Valéry e Nerval: o eu inesgotável

Felipe Fortuna | Valor Econômico | 04 de abril de 2014

Dois lançamentos permitem novas incursões na obra dos dois poetas franceses bem como no trabalho de tradução de poesia para o português.

Gérard de Nerval: Cinquenta Poemas

Fragmentos do Narciso e Outros Poemas

 

As numerosas diferenças entre Gérard de Nerval (1808-1855) e Paul Valéry (1871-1945) não são apenas as da cronologia, mas sobretudo de concepção da obra literária. Para o escritor de Les Filles Du Feu (1854), os símbolos do hermetismo – saturados de mensagens esotéricas e de vigoroso discurso místico – se transfiguravam em literatura. Já para o escritor de Charmes (1926), disciplina e rigor deveriam ser forças simultâneas na construção da prosa e da poesia, em repulsa a qualquer aspecto que não fosse determinado pelo intelecto.

Observa-se, no entanto, um interessante ponto em comum entre os dois escritores: ainda muito jovem, Nerval publicou sua tradução do Fausto, de Goethe, com qual ganhou notoriedade. Já Valéry escreveu, na velhice, um Mon Faust (1946) que só seria publicado postumamente: livro confessadamente “sem plano”, na forma de esboços que repercutem as derradeiras meditações do poeta na Europa em guerra.

Dois lançamentos da Ateliê Editorial – os Cinquenta Poemas, de Gérard de Nerval, e Fragmentos do Narciso e Outros Poemas, de Paul Valéry – permitem novas incursões na obra desses poetas, bem como no trabalho de tradução de poesia para o português.

A seleção e tradução dos poemas de Nerval por Mauro Gama inclui As Quimeras, célebre conjunto de 12 sonetos, bem como as Outras Quimeras. Trata-se de um considerável desafio tanto para o tradutor quanto para quem, com acesso ao original, procure desvendar o sentido de todo o esoterismo trazido pelo poeta. Em Ártemis, por exemplo: “É a Décima-Terceira, agora… E ainda a primeira:/ E é a única sempre, ou o único instante:/ Pois és Rainha, Tu! primeira ou derradeira?/ És Rei, Único, tu, ou o último amante?…”

Nem sempre, porém, o tradutor consegue resolver as surpreendentes imagens do poeta – que caíram no gosto dos surrealistas, décadas depois. No conhecido soneto El Desdichado, espécie de autobiografia espiritual e fatídica, o quarteto inicial tem muita importância: “Eu sou o Tenebroso, – o Viúvo, – o Inconsolado,/ O príncipe aquitano em torre agora ruída./ Minha Estrela morreu; meu lude constelado/ Traz o sol negro e o horror da Angústia desmedida”. Lamenta-se que o tradutor não tenha conseguido manter a palavra “melancolia” no último verso, “Porte Le Soleil noir de La Mélancolie”. Essa palavra é essencial para compreensão do estado psíquico do poeta, além de estar inserida na sofrida tendência ao spleen que caracterizou tantos (senão todos) poetas românticos. A ideia de um “horror de Angústia desmedida” introduz elementos estranhos ao já singular estranhamento que provocam os poemas de Nerval.

A edição dos seus Cinquenta Poemas mereceria maior cuidado quanto à fixação do texto original, em que alguns casos foi transcrito com erros; e, nas traduções, maior atenção com o uso pessoalíssimo das maiúsculas, que conferem à mitologia e à vaga religião esboçadas pelo poeta aspectos ainda mais fascinantes.

Desafiadora, exigente, intelectualizada, a poesia de Paul Valéry manteve decisiva influência na modernidade. No Brasil, bastaria citar a concepção de um livro como Claro enigma (1951), de Carlos Drummond de Andrade, que se permite formas clássicas e indagações filosóficas, sob a égide de uma citação do poeta francês: “Os acontecimentos me aborrecem”, em contraponto a uma poesia anterior de engajamento político; ou então, entre alguns outros, o poema Fabula de Anfion (1947) (“gesto puro/ de resíduos, respira/ o deserto, Anfion”), de João Cabral de Melo Neto, a estabelecer diretrizes de uma psicologia da composição; ou então, por fim, “um ódio e um desprezo pelas coisas vagas”, o plano de “enxertar a matemática na poesia, o rigor em imagens livres”, princípios que são traduzidos e divulgados pelo concretismo.

Consciente da complexa articulação entre poesia e pensamento em Valéry, o tradutor Júlio Castañon Guimarães (ele mesmo poeta de cunho meditativo) publica agora Fragmentos do Narciso e Outros Poemas, reunião bilíngue de dez poemas do autor de Charmes, entre os quais se encontram, além do poema que dá titulo ao livro, Ária de Semíramis e Palma.

O último dos poemas citados, Palma, dedicado à mulher, encerra aquele livro do poeta de maneira exemplar: trata do amadurecimento da poesia (e das obras de arte) por meio do trabalho que se dá com tempo e com a perseverança. Seus versos de sete sílabas sugerem leveza e contenção: é o comentário final, o acabamento de um conjunto elaborado. O tradutor brasileiro é competente ao transmitir o resultado: “Por mais que se dobre afeita/ A tais bem sem contenção,/ Sua figura é perfeita,/ E os frutos seus laços são./ Admira como vibra,/ E como uma lenta fibra/ Que divide este momento,/ Decide e, clara, descerra/ Toda a atração da terra/ E o peso do firmamento”.

Relembre-se como o símbolo implacável da poesia de Valéry, em Palma, pode ter induzido o citado João Cabral a singularizar objetos da paisagem (pedra, cana-de-açúcar, bananeira) como pretextos para tratar da arte poética praticada.

Fragmentos do Narciso, ao longo dos seus 315 versos alexandrinos, concentra parte vital das obsessões de Paul Valéry em sua poética. A imagem do narciso, se característica de muitos escritores do simbolismo europeu, tornou-se seminal para o poeta francês. O embate consigo mesmo, o diálogo permanente e tenso entre o eu e a sua imagem refletida (um falso outro a quem era necessário questionar e dirigir perguntas), o contraste entre o Único e Universal – eis alguns dos problemas trazidos por Valéry em seu poema. O narcisismo se posiciona no centro da obra do poeta, presente em diversas fases, tanto na prosa quanto na poesia (e o tradutor brasileiro também insere no livro o poema Narciso Fala: “Ah! A imagem é vã e os prantos eternos!/ (…) Ó forma obediente a meus olhos oposta!”).

A noção de fragmento expressa uma forma inacabada, um caráter ainda não definitivo do que o poeta pensa – e, também, o transito do mito de Narciso pela obra de Valéry, que o confrontava com o “inesgotável Eu”.

A tradução de Castañon Guimarães é meticulosa e seguramente atenta aos desafios apresentados pelo poeta francês, não apenas com relação ao metro, mas em especial às aliterações e às assonâncias, tão comuns em sua poesia. O tradutor, no prefácio, já demonstra sensível preocupação com o seu ofício, trazendo à discussão algumas ideias do próprio Paul Valéry sobre tradução poética. Mas, sempre preocupado, escreveu como posfácio ao livro uma “Nota sobre a tradução”, atraente exposição sobre a operação de traduzir Paul Valéry, na qual são elencados o gosto musical do poeta e o registro da sua voz ao declamar, entre outros aspectos que poderiam ser considerados na passagem para o português.

Do conjunto de problemas que toda tradução de poesia pode suscitar, o tradutor opta por um “microtrabalho das aproximações sonora” e por um genérico “mecanismo de compensação” a fim de mostrar, no outro idioma, que os versos franceses encontraram semelhança…

Como já se afirmou, a tradução de Fragmentos do Narciso e Outros Poemas mostra zelo e consciência. Por isso mesmo, teria sido importante dar maior atenção a um conjunto de palavras que se encontra no fulcro de um poema que trata do Narciso e do narcisismo. Trata-se do grupo formado por “eau/ eaux/ onde” (água/ águas/ água). Paul Valéry traz uma combinação aparentemente aleatória com as três palavras ao longo do poema.

Na primeira aparição, “Je ne troublerai pas I’onde mystérieuse” (“Não turvarei a água em jogo misterioso”), o verbo turvar não transmite a necessária ideia de que a água estagnada não pode ser agitada ou tocada, caso contrário a imagem de Narciso desapareceria da superfície (como acontece no último verso, “Passa, e num tremor quebra Narciso, e foge…”). Nos versos 59 a 61, a palavra francesa “onde” aparece três vezes, formando um núcleo por si só: mas, tangido pelas exigências de rima, o tradutor prefere “remanso” para o verso “À cette onde jamais ne burrent les tropeaux!” (Nenhum tropel jamais bebeu desse remanso!).

Duas vezes o tradutor prefere traduzir “onde” por “vaga”, quando “das águas” e “às aguas” seriam plenamente aceitáveis. Afinal, em dois versos, Júlio Castañon Guimarães se resigna a traduzir “onde” por “onda”, cujo sentido em português é notavelmente distinto do francês literário mais arcaico.

Fragmentos do Narciso e Outros Poemas”, com seus dez poemas, constitui atualmente a reunião mais generosa de poemas de Paul Valéry em língua portuguesa, uma vez que outras edições se limitavam a apenas um longo poema. Torna-se uma referência, pois, a partir de um trabalho lento e gradual que permite mirar com atenção tanto o eu do poeta quanto a imagem do seu tradutor.

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Felipe Fortuna é poeta, ensaísta e diplomata. Recentemente publicou o livro A Mesma Coisa (Topbooks)

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