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A vida que segue

Vilma Costa | Gazeta do Povo | Junho 2013

O Rio na Parede, de Gil FelippeO Rio na Parede, de Gil Felippe, reúne vinte e cinco textos curtos, reeditados, a maioria, depois de cinco décadas. Chama atenção como a forma e o conteúdo se relacionam, negociando sentidos e instalando-se no tempo presente, mesmo que a narrativa prime pela retomada de fragmentos da memória.

Uma multiplicidade de questões é levantada, nas quais o cotidiano, aparentemente banal, dos personagens ganha peso. As frases são coordenadas por uma adição sumária de fragmentos, numa sintaxe peculiar, cujas ideias são sugeridas por imagens, sons, cores, além de traços de uma linguagem oral quase descomprometida. Quase, na medida em que há uma intencionalidade de construção de sentidos, mesmo quando o texto parece oferecer leituras herméticas.

Espaço cênico

Luz Azul inicia-se: “Do fundo da panela de ferro a luz azul jogava as sombras das plantas secas no fundo branco”. Trata-se de uma descrição que envolve elementos concretos para criar a imagem poética. O desdobramento é uma sequência de frases curtas que, como uma enumeração aleatória, precipita-se a compor a cena. “Paredes forradas de pinturas. Cada qual, sua história. Uma lembrança. Agradável… (…) Barulho forte do movimento da rua. Lá embaixo. Livros, papéis na mesa.” Por esses elementos transitam as reflexões do narrador. Um eu lírico que fala do mundo que o circunda como se só assim pudesse encontrar um lugar na solidão do seu dia ou, quem sabe, da própria vida.

A luz azul, como uma câmera, ilumina utensílios e silêncios. Acende-se e apaga-se, numa manifestação de presenças e ausências, lembranças e esquecimentos. “Sapatos, chinelos debaixo da cama espiam. Nenhum outro para companhia. Chegavam, e logo iam. Nunca, ficavam… Luzes acesas? Tirou a bermuda. Deitou na cama azul. As sombras das plantas secas no forro branco não mais. Luz azul, só amanhã. E sempre.”

Luzes e sombras desenham um espaço cênico que ajuda a construir esses sujeitos. Eles sofrem todos os percalços do viver. O medo como assombração assusta o protagonista de A Claridade, Agora:

Encontrou só a escuridão da sala. Só o escuro. Nada mais. Atravessar a sala. Acender a luz. Coração rápido. Sim, de repente ouvira. Passos. Passos fortes. Descendo as escadas… O ranger das escadas. Frio na espinha, pelo corpo… A mão na boca, apertando, apertando. Apavorado, consegui gritar. As mãos sumiram. 

Depois de uma noite escura e assustadora, a paz só pode ser restaurada com a claridade do dia. As imagens cromatizadas facilitam a narrativa difusa do encontro do mundo interno com o externo. A cidade, como alegoria deste último, traz elementos internos dos seus habitantes como quadros na parede de uma casa. “Lá em cima a cidade. E mais gente começava a viver por entre o cinza. O cinza da cidade cinza. Edinburgh cinza, sempre cinza. Gente cinza.”

Em Ponto Negro, Negro, o medo fala alto ainda: “Angústia profunda doendo a mesma dor. O medo. O meu medo? O medo de ficar só. O medo da morte. A morte concreta, não mais abstrata. A morte sem simbologia”. Este ponto negro, “naquela noite de solidão imensa” aponta uma perspectiva de travessia: “E o medo acabou. De atravessar o espelho”. A narrativa neste conto movimenta-se mais como um fluxo de consciência do que como sequência de fatos concretos. O medo da morte sem simbologias é também o medo de amar, o medo do encontro consigo mesmo do outro lado do espelho, o medo de viver, de atravessar as próprias fronteiras.

Fantasmas da vida

Se por um lado alguns contos assumem uma feição lírica da expressão dramática dos personagens, por outro, algumas surpresas interrompem a gravidade de situações desconcertantes, introduzindo uma bem-humorada solução para certos impasses. É quando o riso pede licença ao trágico e domina a cena. Luz Difusa é um bom exemplo: “Entrou, contornou de móvel fugidio, na luz difusa da sala. Estendidos no sofá. Amor interrompido. A mulher dele e um homem. Desconhecido. Fazer alguma coisa. Tudo. Matar, estrangular”. Depois de toda a tensão que o fato poderia provocar, à moda de Nelson Rodrigues, um desfecho surpreendente nos aguarda. Mais que o desespero da flagrante traição, respira-se aqui o gostinho doce da vingança. Como isso é possível? Só lendo o conto para saber.

Terno Vermelho reacende lembranças da infância do protagonista. O menino precisava pagar uma promessa. Regras e burocracias da Igreja o impediam. As artimanhas engendradas para realizar o feito contavam com a cumplicidade da avó. “Ninguém desconfiava. Nem o padre. Ele era anjo. Baixinho falou com a avó. Vontade de fazer xixi. Levantou o vestido, ali mesmo fez. Sorrisos das Filhas de Maria. Descoberta do sexo do anjo. O padre viu. Não gostou. A avó sorria. Vencera.”

Há na maioria dos textos uma semelhança de construção, apesar da variedade temática e de estilos (dramático, irônico, poético, onírico). Escritos na década de 1960, mantêm o frescor da atualidade. Talvez porque o tempo e o espaço não têm marcas definidas: quando a matéria trata da condição humana e a linguagem assume suas nuanças poéticas, as datas perdem importância e os lugares, sua concretude. São textos que tanto podem ser lidos como um só conjunto, quanto cada individualmente. Com exceção dos dois últimos, que ganham ares de crônica: E o Ano Novo Então Começou fixa-se em uma data representativa de mudança, retomada, recomeço; A Melhor Idade insinua um olhar contemporâneo, irônico, distraído sobre a passagem do tempo.

O Rio na Parede, conto que dá título ao livro, cai como um raio, abrindo um buraco por onde um rio lá fora se desenha na parede. “A cozinha era cozinha (…) A solidão, ficou solidão mesmo.” Duas afirmações tão assertivas podem nos levar a questionar: “Será? E a cozinha que era cozinha, o que é agora?”. A cada frase, sentidos se multiplicam produzindo um aparente nonsense. Sonho, representação, pintura na parede, reminiscências de um tempo povoado de lembranças, uma estrada vazia como um rio que caminha sem olhar para trás. É a vida ameaçada que continua ali através de vozes que resistem com seus fantasmas, seus sonhos, suas histórias.

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Gil Martins Felippe nasceu em São Carlos (SP). É Ph.D. em Botânica (fisiologia vegetal) pela Universidade de Edimburgo, na Escócia, e autor de vários livros sobre o tema. Tem cerca de 160 artigos publicados em revistas científicas brasileiras e estrangeiras, além de artigos de divulgação científica e vários livros didáticos. É membro titular da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. Pela Ateliê, publicou também os livros No Rastro de Afrodite – Plantas Afrodisíacas e CulináriaAmaro Macedo – O Solitário do Cerrado.

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