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Singular Filosofia

O veio transcendental da prosa de Juliano Garcia Pessanha, cuja obra merece ser descoberta

Juliano Pessanha

Alcir Pécora | Cult | 01/11/2012

O paulistano Juliano Garcia Pessanha (1962) tem produzido uma obra literária consistente, composta até agora de quatro títulos: Sabedoria do Nunca (1999), Ignorância do Sempre (2000), Certeza do Agora (2002) e Instabilidade Perpétua (2009), todos lançados pela Ateliê Editorial. São livros sérios, nascidos de questões que se dão a ver vigorosamente no corpo mesmo de sua forma; não tão isentos de defeitos, pois não buscam terreno batido ou aplainado.

E a principal questão enfrentada por Juliano Garcia Pessanha é justamente a de como habitar de maneira íntegra um mundo dessencializado, tomado por entidades institucionais e figuras blindadas por “homens em serviço”, como ele diz, sem mais quase traço de humanidade. Diante da evidência da devastação contemporânea, ele se pergunta se ainda há possibilidade de fundar – ou melhor, já que se trata de um mundo sem fundamentos -, de “pendurar” um rosto de pessoa numa vida “em aberto”, sem graça e sem metafísica.

A resposta que Juliano oferece em seus livros é um valente e generoso “sim’. É verdade também que a força volitiva do “sim” se esgarça, por vezes, em certa nostalgia heideggeriana do Ser, manifesta, por exemplo, em lances de devaneio sentimental sobre a própria infância infeliz. No pior dos casos, isso acaba resultando num contraponto especular do “narcisismo trabalhista” acusado nos homens “de carreira”. Contudo, não esta aí, de nenhum modo, a versão mais justa de sua obra.

Tornemos ao ponto: na literatura de Juliano Garcia Pessanha, a ideia de “singularidade” do sujeito se inscreve no âmbito de uma noção de “natalidade” dolorosa, que perdura ao longo da vida, surgindo à consciência menos como um esclarecimento do que um abismar-se diante do que parece esquecido ou domado.

Esta é, paradoxalmente, a esperança de que a lucidez se mantém: apenas a dor persistente desse momento resistente à cura e à normalização do curso da vida pode fazer frente ao nada presentificado. A consciência nada tem de plena; como, por vezes, sequer alcança um fio de enredo familiar, mal se distingue de uma espécie de “aparição”, uma presença assombrada.

O paradoxo postula, portanto, que a dor pode se tornar aliada de uma pessoalidade adversa à neutralização da experiência. A busca de si equivale a uma travessia na qual o sujeito nada leva consigo, a não ser uma perigosa “confiança” – uma “esperança radical”, como diria Jonathan Lear – no ser destituído pelo presente, cujo caminho de destruição admite trilhar até o fim.

De maneira apropriada, a realização formal da obra de Juliano Garcia Pessanha se apresenta como um discurso inquieto, dramático e autopensante, análogo à expectativa difícil de encontrar uma vida própria, aberta afetivamente ao outro. O custo imediato a pagar é o enfrentamento das armadilhas e expedientes dos vocabulários à mão: narrativas deliberadamente esquemáticas – literatura prêt-à-porter -, as quais, por isso mesmo, estão impossibilitadas de tocar o abandono e a tragédia na qual existe uma experiência real.

Ainda em termos formais, dois aspectos ajudam a pensar o que ficou dito. O primeiro é a composição estruturada como um cuidadoso arranjo de diferentes gêneros. Alternam-se ensaios filosóficos (ajustadíssimos academicamente, sem que faltem notas, domínio profissional do assunto e bibliografia especializada), com contos, fragmentos de prosa, comentários eruditos, formas breves, como sentenças e aforismos, poemas, além de anotações de caráter manifestamente biográfico e até confessional. Tal variedade de registros logra um notável efeito de expansão de universo de referência da narrativa que se vai construindo residualmente – um fenômeno que, visto pelo lado inverso, também evidencia a potência teórica e analítica da ficção assim elaborada.

O segundo aspecto diz respeito à dinâmica de enredo, análise e afetividade implicada numa narrativa cujo andamento se faz usualmente sem concessões ao romanesco. Juliano a compõe de forma insólita e minuciosa, ora conduzida com sutileza e precisão cerebrais, ora favoravelmente disposta à deslocação de violenta massa de sentimento. Num terreno exíguo de ação, trabalham guindastes espirituais de grandes proporções.

Sincronizando ritmos tão diversos – sutil e analítico, brutalista e afetivo -, Juliano tateia o corpo do discurso em busca de uma espécie de veio transcendental. Aquele, raro, que permanece apto à inscrição de um rosto singular, que é também o de uma autoria.

Juliano Garcia Pessanha estudou direito e filosofia, e é mestre em Psicologia. É professor e dirige oficinas de escrita. Também é autor da trilogia: Sabedoria do Nunca (1999, com textos que ganharam o Prêmio Nascente, promovido pela Abril/USP), Ignorância do Sempre (2000) e Certeza do Agora (2002).

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