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Neruda brasileiro

Crônica de Madô Martins | A Tribuna
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Deste Lugar, de Paulo FranchettiFoi com Pablo Neruda que conheci a capacidade masculina de escrever poesias de amor sem o ranço do machismo. Em seus versos existiam um homem, uma mulher e um sentimento partilhado numa mistura bem dosada de bem querer e paixão que marcaram toda uma geração de leitores e, como não admitir, também de escritores, a tal ponto de vários de nós batizarmos os filhos com seu nome.

Mas não é apenas com palavras que Pablo Neruda traduz emoções. Suas imagens são únicas, plenas pela latinidade, permeadas pelo cotidiano, imantadas nos cinco sentidos. “Para que tu me ouças / as minhas palavras adelgam-se por vezes com o as asas das gaivotas nas praias” ou “Era a sede e a fome, e tu foste a fruta. Era a dor e as ruínas e tu foste o milagre. Ah, mulher, não sei como me pudeste conter na terra da tua alma e na cruz dos teus braços!” E ainda: “Eu disse que no vento ias cantando como os pinheiros e como os mastros. Como eles tu és alta e taciturna. E ficas logo triste, como uma viagem.”

Recente leitura me fez saber que há entre nós um poeta tão candente quanto o chileno, a mover nosso imaginário em direções até então insuspeitas. Já tivera a sorte de o encontrar em eventos que celebravam a arte do haicai, no qual também se destaca, mas não imaginava quanto ficaria surpresa e grata com seus versos brancos, onde transborda uma sensualidade tão tácita quanto contemporânea.

Há outras obras do autor, mas em Deste Lugar, publicada este ano, Paulo Franchetti se revela um amante arrebatador, quando propõe: “Escrever sobre o seu com o meu corpo as sílabas mudas”. E, da mesma forma que Neruda, traz à cena as coisas comuns do dia a dia: “Desvio a atenção: um cachorro, o saco de lixo, quase invisível no escuro, um carro que passa e dobra a esquina: onde andará,  como um mantra, essa pergunta, alternando com o ruído dos meus passos”.
Igualmente ao antecessor, o poeta de hoje cita sabores — “damascos, nozes ,frutas secas, o coração endurecido, corpo virado do avesso.” E também passeia por fixações nerudianas, como a farinha branca por ele tantas vezes citada. Por tudo isso, sou fã declarada de ambos.

Mas como sei que a cada leitor toca uma certa obra, para que vocês avaliem por si o talento desse professor titular de Literatura da Unicamp, transcrevo o poema da página 20: “Eis que se move como o vento sobre a água. Quando a abracei, a carne firme sob a minha mão. Seus olhos abertos, os cabelos soltos. Eu lhe disse as verdadeiras palavras. O resto, no compasso, junto – uníssono e agitado coração. Agora a contemplo, enquanto caminha. Ou se debruça, em atenção. A boca, os pés, a linha da cintura: tudo ali renova o voto da destinação”.

Saiba mais sobre o livro Deste Lugar, de Paulo Franchetti

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Paulo FranchettiPaulo Franchetti é professor titular no Departamento de Teoria Literária da Unicamp e presidente da editora da mesma universidade. Escreveu, entre outros, Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa. Seu livro de haicais, Oeste, representa uma das mais admiráveis experiências na recente poesia brasileira. Para a coleção Clássicos Ateliê organizou também O Primo Basílio, Dom Casmurro e Iracema, estes dois últimos em parceria com Leila Guenther.

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