Questão Inesgotável

“Talvez devamos concordar com Adorno nesse ponto, ao lembrar que a realidade é, em si mesma, ideologia”

Equus

Renato Tardivo

Um médico angustiado. Martin Dysart (Elias Andreato) acumula uma série de questões e, ao que parece, não dá conta delas sozinho. Corajoso, sabe que o melhor dos remédios é compartilhá-las. É assim que passa a limpo a enigmática história que viveu com o paciente Allan Strang (Leonardo Miggiorin), jovem que cometeu o seguinte crime: cegou 5 cavalos.

Refiro-me à peça Equus, de Peter Shaffer, adaptada e dirigida em montagem em cartaz em São Paulo por Alexandre Reinecke e que, além de Andreato e Miggiorin – dupla mais que afinada –, conta também com Patricia Gasppar, Jorge Emil, Mara Carvalho, Leo Steinbruch, Gustavo Malheiros, Bruna Thedy e Fernanda Cunha.

O texto foi adaptado para o cinema nos anos 1970, com roteiro do próprio Shaffer e direção de Sidney Lumet. No Brasil, o espetáculo fez sucesso com Paulo Autran (psiquiatra) e Ewerton de Castro (Allan). Em 2007, a peça voltou a ser notícia, devido à polêmica em torno da cena de nudez pelo ator Daniel Radcliffe (Harry Potter), que fazia Allan.

Peter Shaffer, o autor, diz ter tomado conhecimento dessa história – verídica, portanto – e, embora desconhecesse os detalhes, ficou tão impactado que a transformou em ficção. Temos, de saída, uma primeira chave interpretativa: a analogia entre o impacto que Allan causa ao médico (personagens) e o impacto experimentado por Shaffer. Com efeito, em ambas as camadas – realidade e ficção – parte-se de um enigma (o ato de cegar os cavalos) que se desmembra em inúmeras questões para as quais, finalmente, não se encontram respostas; ou, pelo menos, não uma única resposta.

O que interessa é encaminhar as questões, isto é, ficam em evidência as (im)possibilidades de existência de continente para os mais diversos e por vezes absurdos conteúdos. O texto disparado pelas reflexões do médico e, a partir disso, as atitudes vividas por Allan interpelam o espectador o tempo todo. É muito interessante, na montagem atual, o aspecto de prisão da clínica psiquiátrica – corredor gradeado, espécie de clausura habitada pelo paciente, mas também pelo médico.

A clausura de Allan é arcaica. Sufocado pelo fanatismo religioso da mãe e pelo comunismo fanático (outra religião) do pai, seu desenvolvimento vai encontrando entraves importantes de modo que a relação com seu próprio corpo e a sexualidade adquira uma magnitude que ele não consegue dar conta. A partir dos encontros com o médico – sustentados pela promotora (Mara Carvalho) – os resíduos de mistérios são associados e vão tecendo a história de Allan. História que precisa ser testemunhada para existir, ter lugar. Aqui, cabe mencionar mais um acerto da montagem – os atores/personagens, mesmo quando ausentes da ação, permanecem no palco: olham/testemunham a história.

Mas e os cavalos? Bem, Allan elege este animal como depositário do seu desejo e da ambiguidade, em estado limite, que ele traz: fascínio e temor se condensam nessa figura, ao mesmo tempo traumatizada e traumática. Essa ambiguidade é vivida no âmbito do seu próprio corpo – outro aspecto muito bem explorado pela peça, uma vez que os cavalos são representados pelos próprios atores. O corpo (perceptivo) não é mero instrumento, ferramenta, senão a linguagem mesma, diria Merleau-Ponty; linguagem misteriosa, poética, trágica.

As explosões de Allan, ao mesmo tempo virulentas e líricas (quem disse que o transe também não liberta?), têm lugar justamente para além das grades da clínica – que são rearranjadas no palco pelos próprios atores. O trauma precisa ser reeditado e é nessa medida que também o médico, representante do saber e da lucidez, toma contato com a própria loucura. Só assim, quem sabe, Allan pudesse ser reconhecido enquanto um sujeito cindido. Podemos pensar essa cisão, aliás, colada à própria encenação: há o Allan que revive os eventos com o psiquiatra no passado recuperado e há o Allan pós-surto, digamos assim, na ação do presente. Trata-se, contudo, de duas facetas de um mesmo e complexo corpo. E tal ambiguidade coloca em sobressalto a oposição entre saúde e doença, razão e lucidez, liberdade e prisão.

Há quem resolva a questão da seguinte forma: Allan é fruto de uma sociedade que alimenta valores hipócritas e, se ele sofre, é por conta da imposição desses valores. Entretanto, esta talvez seja uma forma tão ideológica de lidar com o problema quanto as ideologias que ela busca combater, isto é, esse relativismo é tão perigoso quanto patologizar o diferente. Explico. O convívio com as diferenças implica invariavelmente conflito. Talvez devamos concordar com Adorno nesse ponto, ao lembrar que a realidade é, em si mesma, ideologia. Ora, o reconhecimento de que valores hipócritas atuam na história de Allan implica que ele seja visto em sua complexidade. Mas Allan só pode ser visto em sua complexidade se houver convívio – e portanto confronto, embate – com as diferenças sociais e culturais. Ficássemos cada um de nós fechados no círculo do próprio gozo, não haveria reconhecimento do outro, abertura à alteridade e tampouco seríamos reconhecidos.

Talvez seja esta a verdadeira “cura” que a peça dá a pensar: o discurso angustiado do médico, na aparência atestado do seu fracasso, é emblema do que há de mais bonito (e mais trágico) na existência humana – em um mesmo movimento, ir em direção ao outro e deixar-se atravessar por ele (mas nunca dar conta completamente dessa questão).

Coluna Resenhas - Renato Tardivo

Escritor, mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte, psicanalista. Autor do livro de contos Do Avesso (Com-Arte) e de Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica(Ateliê Editorial/Fapesp).

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