A Luz da Palavra

Priscila Nobre David resenha o livro de Renato Tardivo, que será lançado sábado, dia 16 de junho, na Livraria da Vila – Fradique, em São Paulo.


Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura ArcaicaEm Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica, Renato Tardivo lança-se em uma viagem por duas terras, a da palavra e a da imagem, e é justamente na fronteira entre estas que a leitura desta obra torna-se imprescindível ao leitor interessado na comunicação estreita entre literatura e cinema. Falando em comunicação, escreve Tardivo nas páginas finais deste trabalho: “Passado e futuro ora se aproximam, ora se afastam, mas sempre se comunicam – naquilo que nomeamos presente. Sem embate, não há tempo, não há outro, não há nada”. Neste trecho derradeiro, Tardivo diz da temporalidade, tema primordial em Lavoura arcaica (livro e filme), assim como em seu próprio texto. Não menos importante seria notar que o trecho fala também da relação que se estabelece entre as duas linguagens analisadas no livro, a da escrita e a do cinema. Para esse percurso, o do estudo das obras, a teoria psicanalítica e a fenomenologia de Merleau-Ponty são companheiras, num delinear das travessias. São quatro as partes que compõem esse caminho: “A partir do livro”, “A descoberta do filme”, “A correspondência” e “Da linguagem aos sentidos: à linguagem”.

Em “A partir do livro” encontramos uma leitura profunda e atenta da obra de Raduan Nassar, que nos mostra o poder da palavra escrita. Ao nos levar pelos caminhos trilhados por André (protagonista do romance), Tardivo nos comunica dos pares autor/personagem, continente/conteúdo, que, nessa obra, além de atravessar o ato mesmo de escrever do artista, viabiliza a existência de seu personagem. Na descrição de André, encontramos passagens como: “Em alguns momentos, os contornos de André perdem-se concretamente nos (des)contornos do mundo” ou “continente e conteúdo se confundem” e até mesmo o termo “mistura insólita” que retornará, entre outros conteúdos, ao texto mais adiante. Ao escrever “o romance se constrói justamente entre o novo – lavoura – e o velho – arcaica: ele é o jorro que corre entre essas margens. Ao voltar os olhos para a história de sua família e (re)criá-la em um texto, André presentifica em si – e por extensão na narrativa – conflitos e forças passadas e futuras entre os restos de tempos primitivos e novas possibilidades de existência”, Tardivo inaugura a discussão que será a de maior relevância no decorrer de seu trabalho: a questão do tempo. E como esta, através de ferramentas como a escrita e o olhar da câmera, firma-se como criatura e criador, apresentando-se como presente, espaço que funde passado e futuro, sujeitos sempre articulados. Habitando a última parte do capítulo inicial, os dizeres “neste caso, é a própria palavra do pai que está contida no olhar de André” nos colocam em contato (pela primeira vez?) com a relação entre escrita e cinema que será cuidadosamente discutida no terceiro capítulo, assim como uma anunciação, como que oferecendo já na abertura uma parcela do fim.

Ao ler “A descoberta do filme”, deparamos com um passeio delicado pelas peculiaridades do olhar (cinematográfico) lançado à obra (literária). Através da análise de vários fragmentos de entrevistas com o diretor Luiz Fernando Carvalho, assim como com os demais componentes da equipe, entre eles o responsável pela fotografia do filme, Walter Carvalho, Tardivo recupera e destaca mais uma vez a temporalidade que pauta o encontro entre os dois campos, as duas criações artísticas. Ao discorrer a esse respeito – “na obra de Luiz Fernando Carvalho, o compromisso é com o texto de Raduan Nassar: é ao romance que o filme se endereça. O olhar do cineasta, que parte da palavra, procura – antes de tudo e a todo momento – retornar a ela” -, o autor atenta para os limites entre os dois terrenos, e através de contribuições psicanalíticas, como a retomada do termo après-coup, posiciona a imagem como anterior à palavra, o que confirma a ideia de um porvir (preciso título do livro), no sentido em que foi necessário ao diretor encontrar-se com a obra escrita (ou até, segundo o mesmo, encontrar-se na obra, novamente o porvir…), para nascer o filme, este que já estava vivo: “eu tinha visto um filme, não tinha lido um livro”. Há uma recuperação do tempo através da escrita e do olhar, tanto de André, como dos autores (escritor e cineasta) que não passa despercebida no texto de Tardivo, mas ao contrário, apresenta-se em seu texto como alicerce, que sustenta as frutíferas percepções apresentadas. Na história de André e sua família, há a partida e há o retorno, e entre eles um tempo que fica suspenso, petrificado. Não parece haver separação entre esses dois destinos, um remete ao outro – a presença constante do avanço e da transgressão. O fragmento do futuro já se encontra instalado no passado.

É com a procura que a obra de Tardivo se preocupa em especial. Em “A correspondência”, o trânsito entre as linguagens é discutido em suas minúcias. Escreve o autor a respeito da experiência do cineasta: “Ele se reconhece no texto. Adentra-o por entre as frestas das palavras”. Há nas palavras de Lavoura Arcaica algo de luminoso, que nos convida o olhar, e foi para a construção desse olhar, que a equipe de produção do filme se preparou, até realizar uma “escrita de luz na tela”. Foi ao avistar na escrita de Nassar aquilo que se escondia por entre as palavras, o que elas guardavam, que a escolha da fotografia do filme se deu, trabalhando com a transição entre luz e sombra, acompanhando a história reconstruída por André. Podemos dizer que foi no percurso entre literatura e cinema que se revelou a “luz da palavra”. A esse respeito, Tardivo escreve: “Assim, quando se trata de trabalhar a imagem do cinema a partir de Lavoura Arcaica, cujo cenário envolve concomitantemente tradição e transgressão, a atmosfera construída no filme deve propiciar a proliferação dos mistérios, do invisível”.

É interessante notar também nesse capítulo o retorno da correspondência entre Psicanálise e Fenomenologia, que acompanha o trajeto entre as duas linguagens (escrita e cinematográfica), visando traçar reflexões significativas. Remetendo ao conceito de perversão como possibilidade de interpretação do funcionamento psíquico do protagonista, Tardivo traz à discussão o movimento de circularidade encontrado no discurso e no olhar de André, mas, além disso, aborda os limites da relação entre as duas obras, num movimento que sempre envolve aproximação e distanciamento, transgressão e tradição, e que por fim, de alguma forma, sugere uma volta: na trajetória de André, a busca pela transformação só é possível através da preservação.

Ao encerrar o livro, em “Da linguagem aos sentidos: à linguagem”, Tardivo anuncia a seus leitores as reflexões desde o início já contidas em seu texto, em um movimento de contorno do passado, a fim de ressignificar a experiência, assim como fazia André. É interessante perceber contida na palavra “lavoura” a idéia de movimento, ao significar um cultivo da terra, e por sua vez no termo “arcaico”, o sentido de anterior. Também como o protagonista, Tardivo adentra os resquícios, passeia pelos detalhes, carrega os objetos antigos para a construção de um olhar. Em algum lugar ele escrevia: “O olhar é fundante da história”. Tanto na narração de André, como na análise das obras realizada neste livro, a ressignificação da história se dá através de um retorno ao futuro. É o vestígio de um retorno que possibilita o correr da travessia.

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Priscila Nobre David é formada em Psicologia pela Universidade São Marcos e em Comunicação Social – Cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado.

Renato Tardivo é mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte pela USP e escritor. Atua na interface entre a estética, a fenomenologia e a psicanálise. Foi professor universitário e é autor dos livros de contos Do Avesso (Com-Arte) e Silente (7 Letras).

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