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Futuro do Pretérito

Camila Pitanga

Renato Tardivo

A literatura brasileira já nos apresentou muitas mulheres fortes e misteriosas. Os “olhos de ressaca” de Capitu que o digam. Mais recentemente, Ana, de Lavoura Arcaica (1975), romance de Raduan Nassar, é outro exemplo. Mas não parou aí.

Na última década, para citar apenas algumas, surgiram Matilde (de Leite Derramado, de Chico Buarque), Beatriz (de Um Erro Emocional, de Cristovão Tezza), Dinaura (de Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum).

Lavínia, do livro Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios, romance de Marçal Aquino, também faz parte desse time. E, no corpo de Camila Pitanga, é um dos pontos altos do filme de Beto Brant e Renato Ciasca, a partir do livro de Aquino.

A história, que tem o mesmo título do livro, se passa na região Norte do país, em uma pequena cidade. As três personagens principais, além de Lavínia, o fotógrafo aventureiro Cauby (Gustavo Machado), narrador-personagem do romance, e o pastor Ernani (Zécarlos Machado) foram parar ali fortuitamente.

Lavínia, esposa de Ernani, prostituía-se na cidade grande quando este a “salvou”. O pastor, funcionário público aposentado (e viúvo), é transferido para a igreja do vilarejo. Cauby lá estava, fazendo “bicos” com fotografia.

Nessa cidade sem nome, o destino dos três se atrai e se repele. A geometria espacial nos diz que três pontos formam um – e apenas um – plano. Não por acaso a imagem de três pontos é comumente associada a equilíbrio. Ocorre que, pelo mesmo motivo, quando os três pontos se desencontram, o estrago é irremediável. Triângulos amorosos – a referência a Édipo é inevitável – são evidências disso.

É uma triangulação desse tipo que movimenta a trama. Se é forte o que mantém Lavínia e Ernani (re)ligados (culpa, castigo, proteção, lealdade), é também intenso o que a mantém ligada a Cauby – se tivéssemos de condensar em uma só palavra: olhar.

A busca pelo novo, o interesse pelos contornos (ambos gostam de fotografia), a hesitação entre realidade e alucinação, enfim, são elementos trabalhados no olhar dessas duas personagens: aquele que fotografa e a fotografada. É linda, diga-se, a atuação de Camila Pitanga, que doa o corpo à Lavínia.

A câmera é ora muito próxima ora mais aberta. A proximidade, como nas cenas de relações sexuais, é emblema do mergulho – a partir do olhar – nos corpos. Os planos abertos nos lembram de que se trata de seres-em-situação, isto é, tais mergulhos ocorrem numa dimensão de espaço-e-tempo. Não são raros os planos inclinados, tortos, lembrando-nos de que olhamos a partir de um lugar. Mas qual?

No caso do filme, não sabemos objetivamente de que dimensão se trata, mas há uma série de elementos (a corrupção e exploração em torno do desmatamento, por exemplo) em nome dessa dimensão. Do ponto de vista das personagens principais, talvez possamos chamar essa dimensão de exílio. Esse “exílio encarnado” – o cenário é mais uma personagem –, presente no texto de Marçal Aquino e, por extensão, nos olhares de Cauby e Lavínia, é muito bem construído pela excelente fotografia de Lula Araújo – junto com Camila Pitanga, o outro ponto alto do filme.

O enredo conta ainda com o jornalista Viktor, que encarna de forma limite o que temos de melhor e de pior e que, justamente por isso, tanto tem a dizer e tantas vezes fala demais. O próprio sucumbe às mensagens que deixa.

O futuro do pretérito, tempo verbal da frase-título, é assim: quem fica, persiste nas marcas – como o exílio de “lindos lábios”, os contornos de um corpo frágil, ou como se um raio tivesse nos abatido. Aquilo que Cauby, na última frase do livro, chama de “amor”; e que os olhos de Lavínia, no último plano do filme, também.

Coluna Resenhas - Renato Tardivo

Escritor, mestre e doutorando em Psicologia Social da Arte, psicanalista. Autor do livro de contos Do Avesso (Com-Arte) e de Porvir que Vem Antes de Tudo – Literatura e Cinema em Lavoura Arcaica (Ateliê Editorial/Fapesp).

3 Comentários


  1. Adorei a resenha. Ainda não vi o filme. Ouvi de um amigo que há problemas no roteiro. Não é o que sua resenha diz. Vou ver para conferir. Abraços, Ruth.


  2. Olá, Ruth. Obrigado pela leitura e comentário. Pois é. De algum modo, o roteiro é sempre o ponto nevrálgico nas adaptações. Se tivesse de elencar o ponto fraco do filme, diria mesmo que é o roteiro. Mas, ainda assim, embora não o classifique como excelente, é um bom filme e vale a pena ser visto. Depois me diz o que achaou. Um abraço.

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