Possessão, sopro divino ou Musa. Qual te inspira?

Autor sobre Autor - Alex Sens

“É preciso estar possuído pelo demônio para ter êxito em uma arte.” A frase é de Voltaire, mas poderia ser de qualquer outro artista que tenha sentido essa espécie de possessão durante sua criação artística. A esta possessão também damos o nome de inspiração. Em busca de uma definição para ela, corri os dedos sobre algumas dezenas de livros de minha pequena (e em expansão ad infinitum) biblioteca. Não encontrei nada. Nem em grandes ensaios literários a inspiração ganha algum esboço analítico. E. M. Forster a coloca como um “estado”, e tanto não deixa de sê-lo como nos leva de volta à ideia de possessão, outro estado no qual o corpo se entrega ao estranho e por ele é guiado. O artista seria um possuído espontâneo?

Verbo precedente do latim inspirare, inspirar é soprar para dentro – e também comunicar. Em termos biológicos, a inspiração é uma das duas fases da respiração pulmonar: os pulmões se expandem aumentando de volume, a pressão interna cai, o ar se desloca do exterior para o interior através das vias respiratórias. Por outro lado, em sentido mais figurado e romântico, a inspiração é a intuição primeira que um artista tem antes de criar uma obra de arte. Ela está ligada à percepção, a estímulos sensoriais, à imaginação e à inteligência. Num sentido teológico, a inspiração segue o mesmo fluxo desse rio quimérico, sendo uma espécie de comunicação divina. Daí retorna-se à ideia de possessão, à presença de um espírito que fala com o corpo ou que nele impera durante a criação. No campo artístico, a inspiração era e ainda é chamada de Musa, sobretudo para escritores românticos que extraíam do mundo e principalmente da natureza a fonte de suas obras; pode vir tanto de fora quanto de dentro do escritor, embora este “de dentro” seja um tanto pernicioso. Pernicioso porque o que vem de dentro é imagem concebida a partir de outra(s) que tenha(m) vindo de fora. A inspiração interior pura não existe, aquela que pinga na mente do escritor sobressaltando-o, porque, esbarrando em teorias psicanalíticas, ela faz parte do subconsciente, o porão sombrio e impalpável da criatividade. Quando deixamos a psicanálise e a psicologia de lado, só podemos cair no conceito de inspiração enquanto sopro divino. E retomando a biologia, podemos pensar que a inspiração é igualmente misteriosa, automática, mas não programável – como a de caráter artístico.

Discutir as próprias inspirações e entender todos os impulsos por trás delas é entregar-se a uma vertigem atemporal. Parte do que me inspira surge com a espontaneidade e eficiência de uma lâmpada sendo acesa: subitamente a frase ou a imagem ilumina o escuro caminho da escrita, revelado enquanto a linguagem é esticada em seus próprios limites. Não é comum, mas muitas vezes fui “possuído” ou “iluminado” por histórias quase completas, com personagens, lugares, vozes, enredo, em questão de segundos, como se estas histórias, antes pequenos brotos coloridos enterrados no negrume do inconsciente, desabrochassem em explosões florais de perfumes e pétalas carnudas. A outra parte do que me inspira é mais evidente no ato em que a inspiração se dá. São músicas, filmes, conversas, fotografias, sabores, os chamados estímulos sensoriais. Capto instintivamente essa comunicação sensorial, logo transformada em esboço que se transformará ou não em literatura. Antes de desejar a inspiração como uma característica específica da personalidade artística, é preciso saber observar. E observar sem medo. Observar até ser engolido pelo objeto observado. É a partir de uma observação arguta, de qualquer coisa, que a inspiração torna-se mais palpável, mais rica, e para tê-la, para exercitá-la, é preciso também interesse.

Alguns meses atrás eu estava sentado num dos bancos de um shopping, folheando um pequeno livro do Coetzee em frente a uma loja de roupas esportivas, quando um funcionário começou a despir um dos manequins. Instantaneamente me perguntei: e se o único corpo que esse cara despiu até hoje foi o de um manequim? Seria um fato interessante, incomum e ligeiramente irônico numa contemporaneidade tão estimulada sexualmente, onde corpos brotam aos montes e objetos são transformados em sujeitos para sua autossatisfação. Eu também, vítima dos estímulos, não só vi ironia e erotismo na cena, mas um pouco de tristeza, de drama, e comecei a inventar uma vida para aquele funcionário. Como a morte, a inspiração tem esse poder de surpreender quando menos se espera. E diferentemente dela, não há luto, a não ser que se considere a ideia como ser vivo, cujo falecimento se dá na conclusão de seu processo criativo.

Inspire-se. E observe – também os funcionários das lojas de roupas esportivas. Minha história sobre aquele funcionário morreu dias depois sem conclusão. Seu espírito vaga por aí, em busca de alguém que queira ser possuído.

Coluna Autor sobre Autor - Alex Sens

6 Comentários


  1. Excelente, Alex.

    Eu costumava dizer que onde todos veem uma casa enegrecida pelo incêndio de muitas décadas (eu passava todos os dias por um assim…) o escritor – ou artista, enfim – vê o fogo se esfregando nas paredes todas, vê as cortinas se encolhendo em brasas, vê os livros ardendo, luminosos, ouve os gritos de socorro e a tentativa desesperada de domar tudo com a água da geladeira.

    É incrível como somos possuídos pela história – imaginada? – daquilo que vemos.

    Formidável sua ideia do manequim. Invista nela. Juntou-me água, não na boca, mas nas mãos.


    1. É por aí, Linné, vemos o miolo, enquanto muitos veem a casca, e nem é preciso ser artista para isso, mas ter olhos de já me parece algum começo.

      Agora que a ideia foi exposta, sinto menos tesão de transformá-la em literatura, sabe? Quem sabe um dia vire conto, vire cena, sei lá. Agora que a ideia está na vitrine, qualquer um pode comprá-la. hehe

      Abraços!


  2. Olá, Alex,
    Há um belo ensaio de Octavio Paz, no livro O arco e a lira, sobre a inspiração em literatura. Recomendo.


    1. Alex, eu confesso que não compreendi algumas de suas noções no que tange à lógica:”…sobretudo para escritores românticos que extraíam do mundo e principalmente da natureza a fonte de suas obras; pode vir tanto de fora quanto de dentro do escritor, embora este “de dentro” seja um tanto pernicioso. Pernicioso porque o que vem de dentro é imagem concebida a partir de outra(s) que tenha(m) vindo de fora…” Não seria, meu caro Alex, primeiramente a natureza hiperônimo de mundo e não o contrário? Portanto, a natureza não precederia o mundo, não devendo a este último uma única satisfação?!E quanto à alegada perniciosidade das impressões do meio externo?????!!!!!! Toda nossa vida cognitiva é daí advinda, não?! Portanto, deveríamos ser preemptivamente admoestativos para com a única fonte possível de nossos juízos que, diga-se de passagem, são soberbamente empíricos?! Desse modo, todo saber seria pernicioso! Desde aquele que inspirou Mozart em sua música até aquele que inspirou Einstein em sua ciência! Reflita um pouco a respeito e se possível partilhe comigo suas opiniões subsequentes! A minha crítica é meramente construtiva! Grande abraço!


  3. Alex
    Gostei de seu texto e partilho com você sobre a quase inexistencia de textos sobre inspiração. Ninguém quer falar sobre isso. Por que será? Allimento no meu site uma coletânea de textos sobre o tema e uma centena de depoimentos dos escritores. inclui o seu texto. Falemos mais sobre isso.

    Grato a abraço
    Brito

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