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O machado é para o lenhador como a máquina de escrever para o…

Autor sobre Autor - Coluna do Alex Sens

A figura do cozinheiro geralmente é representada por um homem de roupas claras pontilhadas por botões escuros e um rosto arredondado encimado por um chapéu branco de mestre-cuca; a do lenhador, por um homem de camisa axadrezada, jeans apertados e membros superiores fortes segurando um machado; a da bailarina, por uma mulher jovem e de corpo esguio, com cabelos severamente presos, sapatilhas de cetim e uma saia de tule gaze. A figura do escritor, assim como a do pintor, é comumente representada por seus materiais de trabalho, e não por sua indumentária ou aparência física. No imaginário romântico, o escritor está sempre sentado defronte a uma mesa onde estalam as palavras de uma máquina de escrever, ou correm com som de lixa as letras líquidas de uma caneta-tinteiro sobre o papel, ou cinzentas de grafite. Com o computador, são as teclas suaves quebrando como conchinhas ao encontro da inquietação dos dedos – Rápido! Rápido! Antes que a ideia tombe do lado de cá e se perca para sempre!

Você pode tirar o cigarro da boca do escritor, pode puxar sua caneca de café fumegante e não devolvê-la, pode até mesmo puxar sua cadeira, virar sua escrivaninha, revirar sua concentração e tirá-lo de sua água-furtada: nada disso afetará sua soturna figura enquanto estiver munido de seus instrumentos de escrita. Tire sua máquina de escrever e o encanto se quebra, visualmente ele não é um escritor. Esse “utensílio” da escrita é o que permite ao escritor trabalhar e ele muda de um para outro por necessidade ou preferência, assim como um pintor prefere um pincel de cerdas longas enquanto outro precisa de um com cerdas curtas.

A maioria dos escritores antigos ou clássicos (porque um não se coaduna necessariamente ao outro) tem em comum a máquina de escrever. Numa época em que o computador era impensável, a máquina foi o objeto mais moderno da escrita. Escrever um livro inteiro manuscrito nunca foi tarefa simples, também não ajuda o fluxo, e quando combinados, agilidade mais fluxo resultam numa caligrafia ilegível, como a de Machado de Assis, que às vezes não compreendia o que havia escrito. Sylvia Plath tinha o conhecido hábito de manter diários, e por isso escrevia muito à mão, embora tenha feito o mesmo com sua Royal, uma máquina de escrever de cor preta onde espancou vários poemas e com a qual foi fotografada algumas vezes. Caso muito parecido é o de Jack Kerouac, pai da “geração beat”. Kerouac escrevia muito à mão, sobretudo quando o impulso da escrita era incontrolável, e por isso qualquer meio era válido. Também possuiu uma máquina, uma Underwood, alta e que lembra uma arquibancada de letras circuladas por anéis prateados. Virginia Woolf escrevia sobretudo com canetas de pena metálica, muitas vezes usando uma tinta arroxeada, e outros tipos de caneta, sempre em folhas avulsas e cadernos largos e altos, sem pauta – acredita-se que alguns deles encapados por ela mesma. Além de ter tido seu próprio “lodge”, um cômodo fora da casa exclusivamente para a escrita, Virginia também chegou a escrever de pé, numa espécie de leitoril, a exemplo da irmã Vanessa, que era pintora. Em Dublin, na Irlanda, está exposta a máquina de escrever do modernista James Joyce, mas também foi outro escritor que não dispensou o trabalho manuscrito, tendo muitas vezes problemas com sua criação pois usava óculos de lentes grossas e chegou a passar por onze cirurgias para tratamento de miopia, glaucoma e catarata. Jane Austen, clássica romancista nascida no século 18, escrevia com caneta de pena numa pequenina e circular mesa de madeira, onde mal cabiam suas folhas e o pote de vidro com nanquim. Para editar sua obras, recortava as palavras com uma tesoura. Um caso curioso, mas não de todo incomum, foi o da dama do crime Agatha Christie. Por ter disgrafia, uma rara doença que a deixava incapacitada de escrever de maneira legível, ditava todos os seus romances para uma secretária.

Cada escritor escreve de um modo, num determinado tempo, com uma determinada postura e determinados instrumentos. Já escrevi em cadernos escolares, em folhas de fichário durante as entediantes aulas de Química, numa Olivetti azeitona, em computadores emprestados e meus próprios computadores. Hoje faço esboços em Moleskines, sempre com a mesma caneta preta, e escrevo as várias versões do que será literatura no computador, porque as teclas me permitem uma agilidade tal que acompanha o fluxo criativo. Gosto do romantismo do papel de qualidade, tenho esse fetiche pela papelaria de luxo com suas canetas grossas de tinta escura como é escuro o enredo ainda não atingido pela luz da criação, mas nunca dispenso qualquer forma de colocar a coisa-texto para existir. Escrever é marcar essa existência e o processo pela qual ela se dá não pede razões – é absolutamente medular.

Autor sobre Autor, Coluna do Alex Sens

2 Comentários


  1. Acredito que boa parte dessa efervescência de ‘escritores’ no nosso tempo se deve à facilidade de escrever. Se não houve mais a comodidade do computador, quantos se atreveriam a compor um romance – ou mesmo um conto – nos duros percalços de pena e tinteiro? Poucos, suponho. Os escolhidos, aqueles para quem escrever é um pulsar.

    Eu escrevo no que vier. Metade de tudo que rabisco se perde – e ainda bem. Escrevo em qualquer papel à mão, num processo caótico, perturbado e cheio de garranchos – geralmente roxos.

    Se pudesse escolher, escreveria sempre no limiar entre o dia e a noite. As cores, os sons, tudo me inspira mais nesses momentos. Apesar disso, não é incomum que eu acorde no meio da madrugada e vá escrever em rascunhos no banheiro, para não perturbar minha namorada que dorme. Escrevo até preencher o papel inteiro, então passo para as bordas, escrevo na vertical, encolho a letra, rabisco por cima…

    Quando falo em escrita – e com ela sou passional – lembro do filme “Os contos proibidos do Marquês de Sade”. Sem outro material para compor, Sade passa a escrever nas paredes, usando pra isso o próprio sangue. Eu seria intenso a esse ponto. Se nada mais houvesse, usaria meu sangue de tinta. Sem ser trágico ou extremo, sendo apenas realista.

    Clarice disse que quando não escrevia estava morta. Acho que isso sintetiza tudo. Só me sinto vivo diante da escrita. Não importando a falta de glória ou a falta de jeito. De qualquer modo, eu não viveria sem escrever. E escreverei até morrer. Mesmo que por nada.

    Belíssimas reflexões as suas. Abraço.


    1. Meu caro, você percebeu bem o lado ruim da “efervescência”, não? Se não fossem os computadores, seriam menos escritores enfrentando um lápis ou uma caneta, e as teclas duras de uma Remington.

      E como você, também escrevo no que puder – somente se não há muita opção. Ou se não quero escrever, pelo menos crio um desenho (em palavras) daquilo que depois será um texto. Interessantes suas histórias.

      Enquanto escrevia esse texto, também pensei no sangue, melhor tinta na falta de outra qualquer. Não vejo nada extremo nisso, é de uma belíssima natureza, e orgânica.

      Outro abraço pra ti e obrigado pelo ótimo comentário.

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