O Cheiro do Ralo: liberdade e circularidade

Filme: O Cheiro do Ralo

Liberdade

O filme O cheiro do ralo (2005) foi dirigido por Heitor Dhália a partir do livro homônimo de Lourenço Mutarelli – autor que, além da prosa, possui uma produção significativa de quadrinhos.

A narrativa fragmentada do livro de Mutarelli – cujos parágrafos não são lineares, as frases soltas são como versos, além de haver várias menções a outros livros e escritores – parece à espera de imagens, curiosamente já ali contidas.

A trama gira em torno da seguinte situação. Lourenço é dono de uma loja de objetos usados. Em uma sala de um prédio antigo, ele recebe diariamente pessoas que, precisadas de dinheiro, o procuram para vender suas coisas, desde uma prótese de perna a um faqueiro de prata – para citar apenas dois exemplos.

A sala, que cheira mal devido a um problema no encanamento do banheiro, é toda habitada por essas quinquilharias. Ocorre que as mercadorias têm história; são frutos de experiências humanas – às vezes os objetos são tão investidos de significados que se confundem com as próprias experiências.

Situados na sala, comprador (Lourenço) e vendedores trocam experiências por dinheiro. No mais das vezes, Lourenço age valendo-se do suposto poder que a situação lhe confere: ele pode ou não comprar os objetos. E os vendedores, via de regra, reagem ao contexto pautados pela escolha por vender suas coisas: diante da necessidade por dinheiro, escolhem vender os objetos.

Mas, em ambos os casos, é o exercício da liberdade – diríamos, amparados em Sartre – que em última instância pauta suas ações.

O próprio Lourenço cuida de convencer disso a personagem que mais se vende a ele: a despeito de que precisasse do dinheiro, tudo o que vende, ela o fez “porque quis”; ele nunca a obrigara a nada – no que finalmente ambos concordam.

Próteses

Os vínculos de Lourenço são frágeis. Ele é “amarelo”, sem cor, sem viço. Ao evitar a todo o tempo situações que envolvam afetos, Lourenço toma a direção de um mundo estéril. A história contida nos objetos que chegam à sua mesa parece assustá-lo.

Para se sentir confortável, então, ele transforma afetos em mercadoria. Fixado ao cheiro do ralo, chafurdado no fetiche da mercadoria, Lourenço mantém-se protegido dos afetos: o jogo de compra e venda ele sabe jogar.

À ânsia de sobrepujar o todo, contudo, as partes o revelam. Pelo avesso, é Lourenço que o cheiro do ralo e, por extensão, o próprio filme tratam de revelar. E sempre que esse outro lado aparece, o sarcasmo e a indiferença de Lourenço tomam a forma de precariedade.

Daí ele repetir tanto os dizeres das pessoas que aparecem na loja. Daí ele acumular todos aqueles objetos (que “têm história”) em sua sala. Daí, inclusive, a linguagem fragmentada da narrativa – naquilo que a aproxima dos quadrinhos. Daí as referências, por parte de Lourenço, a outros livros. Daí os flashes em cujas sequências Lourenço procura conferir sentido à sua história. Daí sua busca por construir o “pai Frankstein”.

É imbuído dessa busca que ele gasta uma fortuna pela réplica de um olho. Que passa a testemunhar as situações vividas pelo protagonista, passa a ser o olho de seu pai. Mais à frente, ele despende outra fortuna com a prótese de uma perna – a perna de seu pai.

Inferno

É nessa busca circular, do ralo ao ralo, que Lourenço paradoxalmente (não) se encontra: fugindo da própria sombra.

“O inferno é meu pai”, diz o protagonista. Impossível não lembrar da peça Entre quatro paredes, de Sartre, na qual uma das personagens profere a célebre frase: “O inferno são os outros”.

Os outros e suas histórias são tão ameaçadores que Lourenço os transforma em coisas. Seu gozo perverso, sem culpa, aponta para um descompromisso com a alteridade. É que, levando ao limite a premissa sartriana de que o inferno são os outros, ele não estabelece relações integradas com o mundo que o cerca.

Preso a essa parcialidade ameaçadora, Lourenço acaba, ao recusar o outro, por recusar o próprio eu. Fatalmente, a unidade fechada em si mesma é destruída: “ninguém mais entra, ninguém mais sai”.

O cheiro do ralo, filme dirigido por Heitor Dhália, recupera esses fragmentos, apresentados primeiro no livro de Mutarelli, e os monta em um filme de elevado impacto estético.

A circularidade do ralo, do olho, do tiro, é enfim ressignificada. Desvela-se uma multiplicidade de significados (já ali contidos).

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Renato TardivoRenato Tardivo | Colunista de Cinema e Literatura

renatotardivo.blogspot.com

Twitter: @RenatoTardivo

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5 Comentários


  1. Ae Renato!!!

    Muito boa a coluna, tive o prazer de ver o filme com sua mediação no debate e até hoje tenho a mesma impressão que tive no dia “Será que eu gostei ou não gostei”. Mas agora com a certeza de que o filme é muito bom e o desagrado é pelas sensações que ele nos faz passar em sentir ao longo da trama.

    Abraços

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