Interior Via Satélite, de Marcos Siscar, debate o lugar da poesia

(Jair Ferreira dos Santos – Jornal do Brasil)

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Paira sobre a cena literária, há bom tempo, uma pergunta ainda sem resposta: qual é a poesia possível no mundo contemporâneo, que parece condenado à prosa? Pois formatada pelos objetos e saberes tecnocientíficos, assim como pela parolice comercial das mídias, nossa época descarta o poema, arcaísmo silenciado sob o império da informação em linguagem corrente. Há quem se escandalize com essa hegemonia, mas há também os que aderem a ela estrategicamente. É o que se propõe Marcos Siscar, poeta, tradutor e professor da Unesp em São José do Rio Preto e Campinas, em sua notável coletânea Interior via satélite, ao afirmar: “não importa onde a fisgada nas vísceras lhe corte o verso. ou que o curso da prosa o esconda sob água turva”. A opção não é nova, mas neste caso o tratamento recebido e seus frutos são incomparáveis.

Quatro blocos de poemas nos quais o verso dá lugar à frase, à estrofe, ao parágrafo, sem vírgulas ou capitulares, refazem sofisticadamente nossa percepção do que seja o cotidiano, as pequenas coisas, a ambiência tecnológica e a própria Terra, não sem flexibilidade suficiente para redescrever o amor doméstico ou produzir três tocantes narrativas sobre a Pietá.

Lugar do extravio

Nos textos vinculados ao título, é atribuída à poesia a missão, certamente inédita, de oferecer dos homens e da Terra uma visão exoplanetária: “enquanto apollo 12 fotografa a terra azul por inteiro”, o poeta se vê “como um antitelêmaco nas espumas abraçado com o pai reencontrado”. E, se há somente “interior sem mapa”, é preciso reconhecer que o interior é tanto a província com suas carroças, suas jaboticabeiras, quanto a subjetividade em sua desorientação face a ficar ou ir embora; pois lá “é o lugar do extravio”, onde grassa “carrapicho áspera misericórdia”; lá, “a ficção… é bem real. é a terra. um chão onde cair. ter onde cair morto é motivo de partir”, uma vez que nossa vocação para a errância é inelutável.

Ao mesmo tempo, no céu, onde antes morava o sublime está agora o satélite, responsável por unificar informacionalmente o planeta, e por aí alguns dilemas se desfazem porque as tensões interior/capital, centro/periferia foram canceladas, nivelando-se portanto Nova York e Varginha. Mas isso não é tudo. O satélite, sua telescopia alteram nosso modo de ser no mundo: “quando o poeta ouvia estrelas era o tempo dos subterfúgios”, ao passo que hoje, para conhecer o solo onde pisamos é preciso, imaginariamente, “mudar de ares mudar de escala. a subida é longa … o ar alto rarefeito… exorbitante tudo tão azul”.

Descendo ao patamar das banalidades, a associação entre o factual e o existencial ou o filosófico, em tudo meticulosa, leva Siscar a reconsiderar a manha dos gatos, a tentar, sem êxito, pôr o passado em caixas, fazendo enfim alguém dizer, ao abrir um portão: “ali aprendo a me perdoar por todas as formas de sobrevivência. todas as formas de injusta felicidade”. Ainda assim, nesse universo algo intratável sobra espaço para a alegria de que “tudo se regenera no riso do meu filho enquanto dorme”.

Programa tão arriscado não se sustentaria sem uma poética explícita. “a poesia destrói o humano na frente das câmeras… até que reste apenas o homem… com suas discordâncias”, resume o recado anti-humanista de “Profissões de poeta”. A sequência é óbvia – a fuga à egolatria: “não quero dizer eu prefiro me perguntar quem é você”. Destituído o eu lírico, ressoam elogios às palavras gastas: nelas “reconheço obsessões, impasses… no vazio em que me deixam em vertigem e desamparo sinto que não estou só”.

Já a crença no bathos, nos baixos teores de emoção, evita a grandeur e o recurso ao mistério. Em contraste com a variedade temática, a unidade do texto é fornecida pelo estilo. A objetividade e a solidez da prosa são alcançadas pela justaposição de frases simples e declarativas, por vezes nominais ou truncadas, com poucos adjetivos, para dizer direto o real. À sintaxe sem pontuação cabe recriar a ambiguidade natural à leitura do verso. Quanto ao efeito poético, se é geral, como esperado, sua irrupção ocorre nos interstícios das frases. São figurações ou verdades aqui pungentes, ali irônicas, mas quase sempre incisivas, a exemplo deste que é um de seus melhores momentos: uma amizade acaba porque “cada uma de suas palavras discordava dos olhos”.

Desencanto radical

A originalidade bem temperada mas sem complacência de Interior via satélitereflete a maturação de experiências realizadas pelo autor em obras anteriores, notadamente O roubo do silêncio e Não se diz. Não é menos efetiva, no entanto, sua fidelidade a uma linha de desencanto radical presente na lírica francesa, dos pré-modernistas, Corbière à frente, a Francis Ponge e sobretudo a Michel Deguy, citado aliás na página 26 do livro. Em Deguy, a poesia se mostra especialmente boa para pensar, princípio que Siscar aplica com obstinação ao aclarar os objetos, as situações que narra com acuidade e sedução intelectuais as mais incomuns. A reflexão apoiada na sobriedade e numa extensa cultura literária empresta a seu projeto uma consistência de concepção tão palpável que o leitor a usufrui por ela mesma.

É um prazer mencionar a qualidade do design gráfico desenvolvido pela Ateliê Editorial, valorizado em acréscimo pelas fotos de paisagens geológicas de Cristina Rodrigues. Por sua ambição, sua pertinência, Interior via satélite nos sugere como “cantar” depois que a transcendência vazia, cara aos modernistas, se transmudou no emaranhado da imanência, sem lei e sem fim, dos pós-modernos. E se, como é evidente, não esgota o debate sobre a poesia possível em nosso tempo, é desde já uma fonte necessária ao seu aprofundamento.

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